3 de agosto de 2011

Crítica: Reinício da Continuidade DC - O que editores nunca irão entender… Parte 01

Não gosto de falar sobre as noticías frescas oriundas dos sites especializados. Isso se dá pela ambiguidade própria do adjetivo atrelado à palavra notícia, pois ela pode vir do frigir de ovos ou poderá ser tão somente algo que não passa de um hype da internet, umatentativa de divulgação para a avaliação de editores e criadores de histórias. Nesta semana, porém, uma notícia já nasceu e se tornou velha e, portanto, posso tecer alguns comentários sobre o assunto.

Em 2002, num Congresso sobre personagens de ficção não-literários, tentei demonstrar que as personagens de quadrinhos, ao contrário do que defendeu Umberto Eco em 1979, sofrem de um duplo procedimento de mudança. Para tanto, estabeleci duas noções que devo explicar para que a continuação deste texto não se torne por demais confusa. Trata-se das categorias de adequação e evolução as quais um personagem de quadrinhos de super-heróis pode sofrer quando pensamos no caráter mimético da ficção. Adequação seria toda mudança que serve para a manutenção do horizonte de expectativa do arquétipo de base com o qual determinada personagem dialoga. Evolução é o esgotamento desse arquétipo o que impõe uma mudança arquetípica essencial na personagem. Para que fique claro, adequação foi aquilo que ocorreu com o Superman na maioria de suas mudanças através do tempo; e evolução é aquilo que ocorreu com Dick Grayson ao sair da tutela dde Batman e tornar-se Asa Noturna. Superman, por mais mudanças ao longo de suas décadas de existência (e à propósito, Feliz Aniversário, Kal-l!!!!), continuou sendo o representante do imaginário do leitor da essência do herói, sua versão melhor acabada e referência para as personagens (dentro de seu contexto mimético) e para escritores e editores. Por outro lado, Robin passou do arquétipo romântico do parceiro do herói (Sancho Pança) para um interessante contexto de re-afirmação com relação à imagem do pai (Telêmaco), tornando-se atualmente o Batman (tendo como modelo Galaaz).

 

Esses fenômenos ficcionais geram um problema quando contrastados com noções como continuidade (a história da personagem) e cronologia (a história do universo no qual a personagem está inserida). Um exemplo – ao se afirmar como um herói independente de seu “pai”, Dick Grayson inicia um romance com uma alienígena – nada mais longe do que as sombrias vilãs apaixonadas por Batman, mas isso ocorre na continuidade anterior da mudança modelar da personagem.  Alguns podem argumentar que já se tratava de um processo, mas o que importa ao modelo Telêmaco é o fato de que ele só poderia verdadeiramente se envolver com alguém quando já estivesse firmado o seu novo status heróico. Por isso, seu romance estava fadado ao fracasso desde o início…

A cronologia do universo não fora alterada, mas a continuidade de Robin, sim. Em alguma medida, Dick Grayson, ao se destacar do pai, relacionando-se com uma mulher ou gerando intimidade com outra personagem abre as portas para o processo. Essa afirmação não é de todo errônea, pois, como se trata de um relacionamento quebrado na base de relação entre arquétipos, servirá para que Robin mude de status dentro do ambiente mimético dos quadrinhos.

A cronologia só pode ser alterada com grandes alterações de adequação. Não uma alteração ocasional imposta por determinado autor, mas uma alteração que influa nos relacionamentos entre as personagens. Um exemplo: o casamento do Homem-Aranha não altera seu arquétipo trágico de base (o Thor Nórdico), mas o adequa aos problemas enfrentados por aquele que representa a humildade a um novo público, mudando sua imagem dentro do contexto mimético ao qual se encontra. Por isso, só após o casamento com MJ, Peter pode ser convocado para os Vingadores e mesmo a alteração ddo universo ficional via Mefisto não conseguirá alterar facilmente esta imagem modelar.

Uma outra forma de se alterar a cronologia de um determinado universo ficcional é simplesmente criar um evento em que tudo seja reiniciado. Isso acontece quando a maioria dos modelos basilares inseridos naquele contexto ficcional não puderam ser adequados para as novas gerações de leitores. Um exemplo disso é o evento Crise nas Infinitas Terras que ocorreu em 1984, redimensionando o contexto mimético da Dc Comics e estabelecendo que, aquele novo universo, teria como principal representação a questão da herança familiar. Uma família de super-heróis, para que fique claro, não é uma relação sanguínea (pode ser também), mas uma relação de escolha. Uma espécie de escolha moral de seu sucessor será realizada ou determinado sucessor terá de provar sua importância dentro da comunidade heróica (Wally West e Kyle Rayner são exemplos, respectivamente).

 

Desde Crise nas Infinitas Terras, não temos uma reformulação radical na DC Comics, mas tivemos alguns eventos que tocam no tema da adequaçãoZero Hora e Hipertempo. Essas duas sagas simplesmente apararam arestas que o evento de 1984 tentou organizar. Entendam, o ambiente ficional da Marvel Comics e da Dc Comics é imenso. São milhões de personagens que se colocam à disposição de uma mente criativa (roteiristas e desenhistas) e de uma mente comercial (editores e chfes de marketing e seção). Dessa forma, a adequação e a evolução resultam de um embate nas frentes de entretenimento. As HQ de super-heróis servem, então, de palco de uma disputa muito comum nos nossos tempos – a disputa entre o pensamento puramente artístico e o pensamento puramente comercial. Para o pensamento comercial, não importa a criatividade, a continuidade e a evolução das personagens, o que importa é a disputa comercial… Do outro lado, os artustas que se envolvem com essas personagens de mais de 50 anos em sua maioria, tem de escolher as melhores formas de evoluir ou adequar suas personagens em um contexto mais amplo – o do próprio universo ficcional em que estão inseridas.

Em 2011, foi anunciada uma reformulação do universo ficcional da DC Comics. O grande problema é que se trata de um “reboot que não é reboot” (v. o comentário do MDM), ou seja, se trata de um laboratório em que as personagens serão radicalmente mudadas para melhor se adequarem à mentalidade dos novos leitores. Esse tipo de experimentação foi realizada pela Marvel Comics nos anos de 1990 e vejam quem estava lá, liderando o fenômeno e vejam quem está agora liderando a iniciativa… Apesar da ideia obssessiva de Jim Lee, há alguns pontos que gostaria de analisar, tendo em vista tudo o que ora foi dito.

Na próxima semana, falarei um pouquinho mais sobre o assunto, até lá…

(Origninalmente publicado no blog Pira RPG)

Exercer a crítica a alguns é fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa de legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa a mais que um simples desejo de falar à multidão. (…) Infelizmente, é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes. (Machado de Assis)

Um comentário:

  1. Grande Dr.,

    Ótimo post! Me fez recordar todas as aulas que tivemos no curso "O percurso do Herói". Ouso dizer também que após esses posts cabe um desdobramento bacana, nos falando mais sobre os arquétipos que constroem os personagens.

    Abraços e Sucesso!

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