8 de novembro de 2011

Coficon – O evento acadêmico da Rio Comicon (Parte 01)

Um evento acadêmico organizado dentro de um evento pop sofre dificuldades que já abordei na primeira parte dessa série (AQUI), mas isso pode ser sanado com adaptações de conceitos e noções para o público que é leigo no assunto. Dessa forma, pode-se, por exemplo, munir a plateia com conceitos sem que elas saibam e não recorrer a algumas práticas próprias da academia com o intuito de fazer com que as opiniões do público tornem-se instrumentos com algum valor para o pesquisador da área de quadrinhos (falo por experiência: minha participação no blog é uma tentativa consciente de fazer o mesmo, daí a grande dificuldade – minha – de expor certos problemas nos artigos).

No primeiro dia do Coficon, infelizmente, não foi isso o que ocorreu, em parte. No dia 22 de outubro, às 10 horas, tivemos as comunicações “Sobre quadrinhos e a filosofia: a questão autobiográfica”, de Marcos Carvalho Lopes; “Realidade e ficção nos quadrinhos”, de Fabio Mourilhe; “Sandman: para além do sonho e do devaneio”, de Luis Felipe Castro Alencastro; e “A noção de ruptura de Bachelard nas HQ”, de Fabio Mourilhe. Um primeiro dado importante: em Língua Portuguesa, as siglas não apresentam pluralização quando o último termo já está no plural. Portanto, história em quadrinhos (HQ) e histórias em quadrinhos (HQ) são apresentadas com a mesma sigla e sua pluralização se dá de maneira contextual. Por esse motivo, tomei a liberdade, caro leitor, de corrigir alguns títulos na presente resenha para que não haja dúvidas quanto à correção gramatical de nosso blog.


Marcos Carvalho apresentou, conforme dito acima, a relação entre histórias em quadrinhos e memória, no romance de Umberto Eco chamado A misteriosa chama da Rarinha Loana. Sendo um dos primeiros europeus a lidar com o tema quadrinhos, Eco pode ser considerado um profundo conhecedor dos quadrinhos italianos e da emigração dos quadrinhos estadunidenses em todo mundo. No romance, a personagem possui um tipo específico de amnésia e sua memória é reconstituída enquanto leitor de quadrinhos. O mais importante da palestra, talvez, é determinar que há uma relação entre diversos sistemas semióticos diferentes (HQ, literatura, cinema, pintura, etc), ou seja, as artes, apesar do que os acadêmicos prezam, não mantêm-se isoladas dentro de seus próprios sistemas, mas há uma óbvia comunicabilidade entre elas. Umberto Eco realiza, então, um duplo processo: imprime um diálogo entre literatura e HQ, por um lado e, por outro, uma comunicação entre algumas teorias da psicologia e filosofia com relação às HQ.


Fabio Mourilhe fala, na comunicação “Realidade e ficção nos quadrinhos”, sobre a fronteira entre ficção e não-ficção em um amplo recorte de HQ. Nesse recorte, vemos a questão da fabulação de maneira mais funcional do que aquilo que é usado nos estudos literários. Fabio entende a fabulação como mecanismo de ordem moral-teleológica (ou seja, como uma espécie de organizador da moralidade “superior” na sociedade) e sua dinamização pela função da metalinguagem. Um dos exemplos comentados é o conhecido caso de Grant Morrison e o Homem-Animal. É claro que o leitor guarda essa cena com enorme carinho em seu cérebro, o que me dispensa de fazer uma descrição. Mourilhe apresenta a proposta sob o signo do realismo, como objetivo-fim dos quadrinhos em algum sentido. Para ele, portanto, as HQ dialogam com a realidade, tendo como base suas “verdades ficcionais”.


A segunda mesa em que o tema é Bachelard foi, digamos, excêntrica. De um lado, Luis Felipe Castro Alencastro, desenvolveu em “Sandman: Para além do sonho e do devaneio” os pressupostos de Bachelard em torno das duas noções, mas criou um abismo com relação ao objeto de análise. Muito tempo gasto em definir um histórico que possibilitasse a emergência dessas noções e pouca análise da obra com relação a essas definições. Depois disso, Mourilhe retorna a trabalhar o tema da continuidade, utilizando para tanto a noção de Bachelard de ruptura. Acredito que uma rápida pesquisa possibilite ao leitor fazer a mesma correlação de maneira rápida. O que chama a atenção é que Mourilhe não fala abertamente sobre continuidade, mas a define de maneira exemplar como sendo “os instantes que se revelam relevantes para a produção posterior daquele evento primeiro”.

A terceira mesa teve a participação de Peter Kuper, autor estadunidense de quadrinhos políticos que expressaram ao público brasileiro que nem só de super-heróis e zumbis vive a comunidade americana. Kuper, tal qual Joe Sacco, pode ser considerado um dos proeminente autores de quadrinhos-jornalísticos, ou charges narrativas, se preferir. O autor mostrou, em sua palestra, uma verdadeira seleção de quadrinhos que causaram comoção no público que, surpreso, via nas ilustrações que o artista americano está pensando numa escala muito maior do que se pensava. Além disso, um tema foi amplamente debatido: a censura ao trabalho do artista. Como seu principal veículo era o jornal, a censura de um editor para trocar uma imagem aqui, proibir a publicação de uma ilustração acolá, torna, para Kuper a dinâmica de possibilidades de abordagens um problema: ao mesmo tempo que frustra, serve também como catalisador de novas ideias, tornando esse papel (do censor) um obstáculo que gera, ao fim, uma maior criatividade para o artista.

E foi assim que terminou o primeiro dia da Coficon, semana que vem teremos a segunda parte da cobertura (ui!).

Inté.

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