Um evento acadêmico organizado dentro de um evento pop sofre dificuldades que já abordei na primeira parte dessa série (AQUI), mas isso pode ser sanado com adaptações de conceitos e noções para o público que é leigo no assunto. Dessa forma, pode-se, por exemplo, munir a plateia com conceitos sem que elas saibam e não recorrer a algumas práticas próprias da academia com o intuito de fazer com que as opiniões do público tornem-se instrumentos com algum valor para o pesquisador da área de quadrinhos (falo por experiência: minha participação no blog é uma tentativa consciente de fazer o mesmo, daí a grande dificuldade – minha – de expor certos problemas nos artigos).
No primeiro dia do Coficon, infelizmente, não foi isso o que ocorreu, em parte. No dia 22 de outubro, às 10 horas, tivemos as comunicações “Sobre quadrinhos e a filosofia: a questão autobiográfica”, de Marcos Carvalho Lopes; “Realidade e ficção nos quadrinhos”, de Fabio Mourilhe; “Sandman: para além do sonho e do devaneio”, de Luis Felipe Castro Alencastro; e “A noção de ruptura de Bachelard nas HQ”, de Fabio Mourilhe. Um primeiro dado importante: em Língua Portuguesa, as siglas não apresentam pluralização quando o último termo já está no plural. Portanto, história em quadrinhos (HQ) e histórias em quadrinhos (HQ) são apresentadas com a mesma sigla e sua pluralização se dá de maneira contextual. Por esse motivo, tomei a liberdade, caro leitor, de corrigir alguns títulos na presente resenha para que não haja dúvidas quanto à correção gramatical de nosso blog.
Marcos Carvalho apresentou, conforme dito acima, a relação entre histórias em quadrinhos e memória, no romance de Umberto Eco chamado A misteriosa chama da Rarinha Loana. Sendo um dos primeiros europeus a lidar com o tema quadrinhos, Eco pode ser considerado um profundo conhecedor dos quadrinhos italianos e da emigração dos quadrinhos estadunidenses em todo mundo. No romance, a personagem possui um tipo específico de amnésia e sua memória é reconstituída enquanto leitor de quadrinhos. O mais importante da palestra, talvez, é determinar que há uma relação entre diversos sistemas semióticos diferentes (HQ, literatura, cinema, pintura, etc), ou seja, as artes, apesar do que os acadêmicos prezam, não mantêm-se isoladas dentro de seus próprios sistemas, mas há uma óbvia comunicabilidade entre elas. Umberto Eco realiza, então, um duplo processo: imprime um diálogo entre literatura e HQ, por um lado e, por outro, uma comunicação entre algumas teorias da psicologia e filosofia com relação às HQ.
Fabio Mourilhe fala, na comunicação “Realidade e ficção nos quadrinhos”, sobre a fronteira entre ficção e não-ficção em um amplo recorte de HQ. Nesse recorte, vemos a questão da fabulação de maneira mais funcional do que aquilo que é usado nos estudos literários. Fabio entende a fabulação como mecanismo de ordem moral-teleológica (ou seja, como uma espécie de organizador da moralidade “superior” na sociedade) e sua dinamização pela função da metalinguagem. Um dos exemplos comentados é o conhecido caso de Grant Morrison e o Homem-Animal. É claro que o leitor guarda essa cena com enorme carinho em seu cérebro, o que me dispensa de fazer uma descrição. Mourilhe apresenta a proposta sob o signo do realismo, como objetivo-fim dos quadrinhos em algum sentido. Para ele, portanto, as HQ dialogam com a realidade, tendo como base suas “verdades ficcionais”.
A segunda mesa em que o tema é Bachelard foi, digamos, excêntrica. De um lado, Luis Felipe Castro Alencastro, desenvolveu em “Sandman: Para além do sonho e do devaneio” os pressupostos de Bachelard em torno das duas noções, mas criou um abismo com relação ao objeto de análise. Muito tempo gasto em definir um histórico que possibilitasse a emergência dessas noções e pouca análise da obra com relação a essas definições. Depois disso, Mourilhe retorna a trabalhar o tema da continuidade, utilizando para tanto a noção de Bachelard de ruptura. Acredito que uma rápida pesquisa possibilite ao leitor fazer a mesma correlação de maneira rápida. O que chama a atenção é que Mourilhe não fala abertamente sobre continuidade, mas a define de maneira exemplar como sendo “os instantes que se revelam relevantes para a produção posterior daquele evento primeiro”.
A terceira mesa teve a participação de Peter Kuper, autor estadunidense de quadrinhos políticos que expressaram ao público brasileiro que nem só de super-heróis e zumbis vive a comunidade americana. Kuper, tal qual Joe Sacco, pode ser considerado um dos proeminente autores de quadrinhos-jornalísticos, ou charges narrativas, se preferir. O autor mostrou, em sua palestra, uma verdadeira seleção de quadrinhos que causaram comoção no público que, surpreso, via nas ilustrações que o artista americano está pensando numa escala muito maior do que se pensava. Além disso, um tema foi amplamente debatido: a censura ao trabalho do artista. Como seu principal veículo era o jornal, a censura de um editor para trocar uma imagem aqui, proibir a publicação de uma ilustração acolá, torna, para Kuper a dinâmica de possibilidades de abordagens um problema: ao mesmo tempo que frustra, serve também como catalisador de novas ideias, tornando esse papel (do censor) um obstáculo que gera, ao fim, uma maior criatividade para o artista.
E foi assim que terminou o primeiro dia da Coficon, semana que vem teremos a segunda parte da cobertura (ui!).
Inté.
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